CAP. I
A PALAVRA

A ministra Damares Alves, durante evento de lançamento do novo Estatuto da Criança e do Adolescente | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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A PALAVRA

A ministra Damares Alves, durante evento de lançamento do novo Estatuto da Criança e do Adolescente | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Análise de discurso realizado pela Gênero e Número em mais de 100 perfis de extrema-direita confirma a educação como principal tema usado na tentativa de sensibilizar população contra a “ideologia de gênero” no país

Por Giulliana Bianconi 

As palavras “mulher”, “criança” e “escola” são as mais citadas entre as que compõem o universo das palavras-chave identificadas pela Gênero e Número nos discursos que promovem a “ideologia de gênero”. A análise de discurso de perfis no Twitter mostra que a narrativa predominante no ataque às questões de gênero no Brasil passa, primeiramente, pela educação e pela tentativa de definir a mulher na sociedade – sem contemplar o feminismo, que pouco aparece no vocabulário conservador dos tuítes.

Os perfis analisados foram previamente mapeados, com apuração jornalística e metodologia de pesquisa, fora da plataforma Twitter. Foram listados 120 nomes, nas cinco regiões do país, que atuam nos campos da política, da mídia e da religião e que influenciam o debate da ideologia de gênero com viés ultraconservador. Na sequência, esses nomes foram identificados no Twitter, por ser essa a plataforma central de conversação e narrativas diárias dos atores bolsonaristas e seus aliados.

Para sensibilizar famílias brasileiras e convencê-las de que as escolas estão ideologizadas com conteúdos de gênero e sexualidade sendo apresentados de forma precoce e até pornográfica aos alunos, o movimento antigênero ocupa diferentes redutos sociais: vai das igrejas às redes sociais. É um ativismo conservador. Os perfis que se posicionam contra a “ideologia de gênero” mapeados no Reino Sagrado da Desinformação são pessoas públicas, mas nem todas com grande exposição midiática (Navegue pela rede e pela análise semântica).

Manifestantes a favor do projeto de lei sobre a Escola sem Partido na Câmara dos Deputados | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Com termos relacionados à escola e criança sempre presentes no vocaburário dos que atacam a “ideologia de gênero” fica evidente o que pesquisas acadêmicas sobre o assunto já apontam. “O campo da Educação está entre os que recebem atenção prioritária desses movimentos [antigênero], e parece ser onde eles têm encontrado mais facilidade para obstruir propostas inclusivas, antidiscriminatórias, voltadas a valorizar a laicidade, o pluralismo, a promover o reconhecimento da diferença e a garantir o caráter público e cidadão da formação escolar. Tais propostas são denunciadas como ‘ameaça à liberdade de expressão, crença e consciência’ das famílias, cujos valores morais e religiosos seriam inconciliáveis com as normativas sobre direitos humanos, impostas por governos e organismos internacionais. Escolas e docentes sintonizados com a ‘ideologia de gênero’ visariam usurpar dos pais o protagonismo na educação moral e sexual de crianças e adolescentes para instilar-lhes a ideologia de gênero”, defende o pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e do Centro de Estudos Multidisciplinares Avançados da Universidade de Brasília (UnB) Rogério Junqueira, no artigo A invenção da ideologia de gênero: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero.

Procurador no “front”

Um dos perfis que mais tuitaram ambos os termos “criança” e “escola” – no período de cinco meses da análise semântica feita pela Gênero e Número no Twitter – foi o procurador da República Ailton Benedito (82 menções a “crianças” e 11 a “escolas”). Recorrentemente ele tuíta também a expressão “ideologia de gênero”, acompanhada de termos pejorativos

Benedito, que no momento ocupa os noticiários do país por ter tido seu nome barrado pelo Ministério Público Federal para ocupar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), vinculada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, representa a face mais radical do Brasil bolsonarista que decidiu enfrentar o “fantasma da ideologia de gênero”. Benedito também foi cotado neste ano para ocupar o posto de procurador-geral da República, um dos cargos de maior prestígio em Brasília. É cristão e antiesquerda radical.

O procurador faz uso, no tuíte, do termo verdade, em caixa alta. No Brasil de 2019, a verdade está em disputa e passa pela construção de sentidos para o eleitorado, pela semântica. No bolsonarismo que abraça o conservadorismo de costumes e o discurso da moral e da ordem, as palavras são, recorrentemente, associadas à narrativa bíblica ou, pelo menos, ao discurso de defesa da família, onde está liberada a ressignificação de conceitos, como o de submissão (Leia a reportagem “Submissão).

Com forte base eleitoral cristã e evangélica, o bolsonarismo insiste na narrativa que a esquerda quer destruir a família tradicional. Há níveis mais abaixo na Guerra Cultural, como se viu durante a campanha presidencial, onde as narrativas ficcionais que se encaixam no amplo campo das fake news circularam em massa no Whatsapp.

Guerra de sentidos no Congresso

Uma das frentes a assumir a cruzada antigênero a partir do campo da educação é a dos parlamentares ultraconservadores, que vem apresentando, desde 2014 e em ritmo crescente, projetos de Lei estaduais, municipais e federal que buscam instituir o que a direita passou a chamar de “Escola sem Partido”. Em janeiro deste ano, 22 deputados federais, a maioria deles da bancada do PSL, assinaram a nova versão do PL do Programa Escola sem Partido, que tramita no Congresso e define o que seria válido para todos os sistemas de ensino do país. O texto prevê a possibilidade de os alunos gravarem as aulas e proíbe quaisquer manifestações políticas nos grêmios estudantis. O PL cita o termo gênero uma única vez: “O Poder Público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero”.

Para fazer frente ao Escola sem Partido, a bancada do PSOL apresentou o “Escola sem Mordaça”. O texto que prioriza a defesa da laicidade e da pluralidade é baseado num projeto anterior, de autoria do ex-deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), que por dois mandatos foi o único parlamentar assumidamente LGBT+ no Congresso e, reeleito para seu terceiro mandato em 2018, desistiu do cargo por sofrer ameaças.

A tentativa católica de esvaziamento do termo ‘gênero’

A cruzada antigênero, que vai muito além do bolsonarismo e do movimento Escola sem Partido, é de extrema-direita e tem base religiosa. Na Igreja Católica, a articulação que hoje repercute por aqui foi iniciada em 1995, durante a Conferência Mundial sobre Mulheres (Pequim), quando representantes do Vaticano se levantaram contra o termo gênero, que constava em documentos do evento. Em 2003, quando começava no Brasil o primeiro governo de esquerda desde a redemocratização, a igreja publicou o Lexicon: termos ambíguos e discutíveis sobre família, vida e questões éticas. O livro passou a ser a nova diretriz semântica heteronormativa para o mundo cristão. Um documento que tratava basicamente sobre definições de sentidos. Vocabulários. Àquela altura, a palavra gênero já estava nas universidades mundo afora, nos estudos de gênero, de psicologia. [Leia a entrevista com a filósofa Judith Butler]. A Guerra Cultural incluiria, portanto, essa nova disputa a partir dali.

A força da palavra evangélica

A política antigênero foi formatada a partir de um alerta conservador da Igreja Católica, mas ganhou musculatura, no Brasil, também com a ascensão dos evangélicos neopentecostais, nos anos 2000. Para esse grupo, outras pautas, como o casamento gay, precisavam ser combatidas fortemente.

Com 1,4 milhão de seguidores no Twitter, 2,1 milhões de seguidores no Instagram e uma presença na mídia há mais de 30 anos, com programa de TV evangélico, o pastor pentecostal Malafaia é uma voz influente que ecoa, sob uma narrativa bíblica, o combate à “perversa ideologia de gênero”. Vice-presidente do Conselho Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil (CIMEB) e presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, ele é, na análise semântica realizada pela Gênero e Número, o que mais vezes fez menções ao termo “gay” no período analisado.

Malafaia, que reivindica o posto de “um dos maiores apoiadores da campanha de Jair Bolsonaro”, extrapola a pauta de moral e costumes na defesa ao Bolsonarismo, e não poupa ataques a quem considera adversário, seguindo a linha do “nós e eles” (Leia a reportagem “O Show de Joice“). Em postagens recentes, ele ataca o jornalista gay Glenn Greenwald, fundador de The Intercept, veículo que revelou mensagens e áudios da força-tarefa da Lava-Jato em reportagens.

 

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Influente na política, com presença constante nos bastidores de campanhas e gabinetes de parlamentares e ministros, Malafaia já esteve com a esquerda, ao apoiar as campanhas de 2002 e 2006 de Luiz Inácio Lula da Silva (Leia a reportagem “Concessões”), mas sempre avesso à pauta de direitos LGBT. Em 2014, o pastor pressionou a candidata evangélica à presidência, Marina Silva, que concorria pelo PSB, após ela divulgar as diretrizes da sua campanha eleitoral, que contemplavam a criminalização da homofobia e a adoção por casais do mesmo sexo. O pastor usou o Twitter já àquela época para fazer as críticas publicamente. Pressionada por Malafaia e por grupos conservadores e evangélicos, a campanha de Marina mudou em algumas horas o texto que havia publicado. Os movimentos LGBT rechaçaram a atitude.

 

Em nome da defesa dos “valores tradicionais”, Jair Bolsonaro fez uma campanha presidencial, em 2018, sem abordar a defesa dos direitos LGBT. A percepção de violência contra esses grupos cresceu, segundo a pesquisa realizada pela Gênero e Número no início de 2019.

Eleito, o presidente não citou termos como “gay” ou “LGBT” no discurso de posse. Declarou que “reafirmava o compromisso de construir uma sociedade sem discriminação ou divisão”. E deu destaque ao combate à ideologia de gênero: “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre das amarras ideológicas”. O discurso de posse citou “Deus” seis vezes. “Família” ou derivados, como familiares, foram mencionados cinco vezes.

A ministra pró-vida

Convidada a ser ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a pastora evangélica Damares Alves mantém o tom. Na análise semântica, ela é uma das que mais citam o termo “família”, sete vezes. Mas o que mais a mobiliza é o discurso de proteção às crianças. “O tema criança tem que estar o tempo todo na pauta. A infância tem que estar na pauta do Congresso, do Judiciário, do Executivo, da imprensa. Precisamos dar uma atenção à infância como nunca. Urge a necessidade de um pacto pelas crianças no Brasil”, disse à imprensa ao lançar a nova versão do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em maio deste ano. A nova versão do ECA institui a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, sempre em fevereiro, e ao ser questionada sobre educação sexual nas escolas, afirma que “tem que acontecer, mas com conteúdo adequado”. O conteúdo ainda não foi apresentado publicamente.

Na análise da Gênero e Número, o perfil de Damares Alves no Twitter é o segundo em menções ao termo “crianças” entre os que compõe o grupo da ideologia de gênero, com 66 citações. Já ao termo “mulheres” ela se refere 31 vezes durante o período analisado, menos que a deputada federal Janaína Paschoal (PSL/SP), com 35 menções.

Paschoal e Damares são vozes que, na atual legislatura, defendem a criminalização do aborto, a partir da pauta “pró-vida”, tema que converge cristãos e evangélicos conservadores. Não levam em consideração os dados da Pesquisa Nacional do Aborto, que mostram que mulheres de todas as religiões realizam aborto no país.

Neste ano, o debate sobre o direito ao aborto ainda não chegou ao centro do Congresso, e não mobiliza congressistas conservadores, por ora, nas redes sociais, conforme mostra a análise semântica. Citado na plataforma Twitter, no período analisado, por Alexandre Frota (3 vezes), Eduardo Bolsonaro (1 vez), Joice Hasselmann (2 vezes), Marco Feliciano (1 vez) e Robson Rodovalho (1 vez), o termo esteve mais presente no vocabulário dos perfis religiosos e de mídia, como o do pastor Silas Malafaia (4 vezes).

Na análise geral, percebe-se que o termo é mais citado por homens do que por mulheres que compõem o grupo de 120 perfis analisados no Twitter pela Gênero e Número ao longo dos últimos meses para o Reino Sagrado da Desinformação. É evidência do quanto o debate sobre ideologia de gênero é pautado e dominado predominantemente por homens. No Twitter, assim como nos púlpitos das igrejas, no Congresso Nacional e nos espaços midáticos, os homens ainda falam mais, inclusive sobre os direitos das mulheres.

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