CAP. VI
O PAÍS PARANÁ

Filho ilustre do Paraná, Moro está no centro da agenda que emanou do estado para o resto do país | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

CAP. VI
O PAÍS PARANÁ

Filho ilustre do Paraná, Sergio Moro está no centro da agenda que emanou do estado para o resto do país | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Movimento anticorrupção nascido na “República de Curitiba” também ajudou a motivar pauta conservadora centralizada na família heterossexual cristã e branca; hoje, Paraná está em evidência como nunca antes da história da República

Por Maria Martha Bruno

A metralhadora de Bernardo Küster é ampla e veemente. O paranaense de 30 anos, cujos vídeos foram recomendados por Jair Bolsonaro no final de 2018, avalia que “mídia, novelas, ONU, conselhos de psicologia, OAB, defensoria pública, universidades e organismos internacionais” são defensores de uma das principais ameaças às famílias do Ocidente: a “ideologia de gênero”. Diante de tantos inimigos, Küster precisa ser incisivo. Seu tom é o mesmo adotado por outros baluartes da direita nacional e segue a abordagem agressiva de seu professor, Olavo de Carvalho. O tom da batalha ideológica em curso não poderia ser outro que o adotado pelo guru do bolsonarismo: “Entre abortistas, ideólogos de gênero e adeptos da teologia da libertação eu sou ‘aquele que não deve ser mencionado’. Enquanto eles continuarem a se fazer de santinhos e vítimas, serão marcados a ferro e fogo de todos os lados. Nóis num pára (sic) é nunca!”, escreveu no Twitter em 2018.

Fortalecidos pela cruzada anticorrupção comandada pelo filho mais nobre do Paraná, Sergio Moro, youtubers como Küster, políticos, psicólogos, pastores, ex-policiais e jornalistas ajudaram a colocar o estado em evidência nos últimos anos. Da “República de Curitiba” emanou um “Brasil paranaense”: lá nasceu uma campanha justiceira contra malfeitos na administração pública determinante para cultivar um caldo de pautas de comportamento que, talvez sem a Lava-Jato, não teria a mesma robustez que tem hoje.

A influência da operação no cenário político do país e as sucessivas investigações e decisões tomadas na capital paranaense fizeram com que o protagonismo da “República de Curitiba” – onde é exibido o maior troféu da operação, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – se estendesse ao resto do estado.

De diversas regiões do território paranaense saíram atores importantes da política e da ideologia que se destacaram no país nos últimos anos. O deputado estadual Fernando Francischini (PSL) e Bernardo Küster são de Londrina. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, é de Paranaguá, no litoral do estado, a quase duas horas de Curitiba. O ministro da Justiça e principal estrela da Lava-Jato, Sergio Moro, é de Maringá, no oeste paranaense, assim como Londrina, área sob maior influência de São Paulo do que do próprio Paraná. A deputada federal Joice Hasselmann (PSL/SP) é de Ponta Grossa, a menos de duas horas da capital. As distintas áreas guardam diferenças importantes para entender a política do estado.

“O Paraná sempre foi conservador. Mas o território não é homogêneo. É dividido em três regiões: o leste, do qual fazem parte Curitiba e Ponta Grossa, uma área tradicionalmente mais conservadora; o norte novo, mais ligado a São Paulo e onde estão localizadas Londrina e Maringá — eles nem lembram que são paranaenses; e o oeste, na região de Foz do Iguaçu, mais ligada aos gaúchos”, explica o jornalista curitibano Rogério Galindo. Ex-colunista do jornal assumidamente conservador Gazeta do Povo, demitido ano passado por divergências políticas e editoriais que chegaram ao limite durante a campanha eleitoral, ele se tornou um dos fundadores do portal de jornalismo Plural. Desde 2015, a Gazeta se assumiu como um dos maiores expoentes da imprensa direitista do país. Seu dono, Guilherme Döring Cunha Pereira, é membro da Opus Dei. “Normalmente quando se fala de conservadorismo no Paraná estamos falando dessa região mais antiga, centralizada em Curitiba. Não que o resto não seja conservador, mas aqui é o núcleo duro”, completa Galindo.

Para o cientista político da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Adriano Codato, estes conterrâneos que há cerca de cinco anos  têm lustrado com louvor o ecossistema conservador do país são exemplares “dramáticos” da direita do país. Expoentes locais como Francischini, Küster e Hasselmann são “ocorrências mais visíveis” e “exemplos radicais” deste grupo político. “Na epidemiologia, dizemos que um caso paradigmático revela um padrão. Já um caso dramático mostra ocorrências mais intensas. Por exemplo: uma região com muitos casos de uma doença que levem a óbito versus uma região com mais casos no total”, ilustra.

A sanha anticorrupção alavancada pela Lava-Jato também trouxe consigo uma agenda que inclui o conservadorismo de costumes, mais notadamente vinculado aos discursos favoráveis à família heterossexual cristã e branca (a imigração polonesa, italiana e alemã foram fundamentais para povoar o estado). Não é de se estranhar, portanto, que no Paraná tenham proliferado vozes contrárias à “ideologia de gênero”, cujas primeiras discussões, motivadas pelo debate sobre o Plano Nacional de Educação (PNE) no Congresso Nacional, coincidiram com o alvorecer da Lava-Jato, no mesmo ano de 2014. Um ano antes, na vanguarda do debate, a psicóloga paranaense Marisa Lobo já alertava que a “ideologia de gênero” se tornaria “diretriz obrigatória de todo o sistema escolar”, por causa da votação do PNE. Em 2014, ela acompanharia o amigo e deputado federal Marco Feliciano (PODE/SP) em audiência sobre o tema no Congresso Nacional.

Outras figuras que se tornariam importantes vozes do país na cruzada moral contra a suposta ideologia ganhariam evidência nos anos seguintes, como políticos locais (Francischini e seu filho, Felipe), e políticos tradicionais de alcance nacional, como o senador Álvaro Dias (PODE/PR), cujo histórico de atuação não incluía pautas de comportamento. Mas, na esteira das discussões sobre o PNE, nem mesmo Dias perdeu a oportunidade de se manifestar contra a suposta ameaça, ao atuar como relator do plano na Comissão de Educação do Senado.

“O Paraná passou a fornecer mão de obra qualificada para a revolução conservadora em curso no Brasil. Até a líder do governo no Congresso (Joice Hasselmann), que foi eleita por São Paulo, nasceu e ganhou notoriedade aqui. Temos uma série de pessoas galgando passos importantes. E ainda a figura do Moro, que só não se elegeu presidente da República porque não quis”, avalia Rogério Galindo.

Apoiadores da Lava-Jato celebram a prisão de Lula na porta da sede da Polícia Federal de Curitiba, onde o ex-presidente está detido | Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

O lugar do Paraná na Região Sul

Na região, historicamente o protagonismo político sempre coube ao Rio Grande do Sul, estado de Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola e Dilma Rousseff (à exceção do primeiro, cujo espectro político transitou entre o autoritarismo e o progressismo, todas as outras são figuras mais associadas à esquerda). Embora nunca tenha feito um presidente da República nem mesmo um presidente de Câmara ou Senado, como o vizinho meridional, foi somente em Curitiba que Plínio Salgado, líder da Ação Integralista Brasileira (AIB), inspirada no nazismo e no fascismo, venceu as eleições para a Presidência da República em 1955. O historiador da UFPR Rafael Athaídes revela que anos antes, em 1937, o Paraná era o oitavo estado do país em número de afiliados, com 53 mil inscritos. “Além disso, a AIB congregou boa parte da intelectualidade nacionalista paranaense (…) e atraiu a simpatia de ordens religiosas, professores universitários, jornalistas e políticos de peso no plano estadual. Elegeu metade de algumas câmaras de vereadores, dois prefeitos e mostrou ser a segunda força política nas urnas do Paraná, um ano após sua fundação”, ele relata.

Anos depois, Curitiba se tornaria a capital do Brasil por quatro dias, entre 24 e 27 de março de 1969, no período mais duro da ditadura militar. Meses antes, em dezembro de 1968, havia sido decretado o AI-5 (Ato Institucional nº 5). A sugestão partiu da mulher do então presidente Artur da Costa e Silva. A curitibana Iolanda Costa e Silva queria estreitar os laços locais com o regime. Naquele curto intervalo de tempo, as sedes do Poder Executivo e das Forças Armadas foram transferidas para a cidade.

À medida em que foi ganhando importância na política, a economia do estado também deixou de ser coadjuvante. Em 2016, o Paraná registrou o quinto maior Produto Interno Bruto do país, de acordo com os números mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segue atrás do Rio Grande do Sul, mas por uma diferença de apenas 7 milhões de reais. Vale lembrar que o território paranaense é apenas o 15º maior do país.

“Há algumas décadas atrás, havia quatro players no Brasil: Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. No Nordeste, temos ainda figuras muito importantes para a política do país, como Fernando Collor de Mello e Renan Calheiros, oriundas do coronelismo, com o peso do sobrenome. O Paraná nunca teve isso, mas tornou-se importante economicamente”, explica Codato.

O professor da UFPR chama ainda atenção para um fator em especial: a classe média local. “No Paraná, ela ganhou um protagonismo moralizante e passou a formar figuras de direita e extrema-direita”, completa.

De acordo com levantamento do pesquisador Adalberto Cardoso, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a partir de dados de 2015 da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad), do IBGE, o estado possui a sexta maior classe média do país, com 13,6% de sua população total. O Paraná fica atrás apenas do Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Roraima, e está bem à frente do ex-primo rico, o Rio Grande do Sul, onde 12,2% da população faz parte da classe média.

Para Codato, que também dirige o Observatório de Elites e Políticas Sociais do Brasil, o tamanho da classe média paranaense ajuda a explicar as opções políticas do estado, já que reflete um inventário de características da classe média brasileira: “As camadas médias no Brasil são formadas sobretudo por profissionais liberais, pela alta cúpula dos funcionários públicos, por pequenos empresários. São contrários à corrupção e aos programas sociais e têm medo de se proletarizar, pois tomam como paradigma os ricos. A classe média também acredita no mito da meritocracia, por isso é contra as políticas de compensação social. Sobre a corrupção, como a classe média paga muito imposto, tende a se aborrecer mais com o desvio de dinheiro público. A bandeira anticorrupção é muito forte desde a década de 1950 e gera uma crítica genérica ao Estado e à política”.

O cientista político Cláudio Couto, coordenador da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, observa no dado da Pnad um indicador sócio-demográfico importante da classe média paranaense e faz um comparação com outras unidades federativas do país: “É claro que se a proporção é grande em um estado, tende-se a encontrar mais gente com este perfil. Esse padrão é muito parecido com o que vemos no Distrito Federal, por exemplo, onde Jair Bolsonaro ganhou [com quase 70% dos votos] e onde há uma classe média grande, em boa parte formada por funcionários públicos. Eles poderiam ter mostrado receio por causa da política liberal de Bolsonaro para o setor, mas preferiram votar nele”, compara. Para Couto, a chamada classe média conservadora não deve ser mais chamada deste modo.

“Ao embarcar no ‘lavajatismo’ e no anti-petismo, este setor acabou atraído para o seio do bolsonarismo. Isso não é conservadorismo, já que o conservadorismo é menos radical que o bolsonarismo. Isso é extrema-direita”, analisa Couto.

O youtuber de Bolsonaro e de Olavo de Carvalho

Assim como outros expoentes da direita brasileira surgidos nos últimos cinco anos, Bernardo Küster encontrou nas redes sociais sua tribuna principal. Antes de voltar sua energia e se notabilizar pela cruzada contra a “ideologia de gênero”, ele era um jovem que compartilhava vídeos de John Pizzarelli, notícias sobre as gafes de Dilma Rousseff e sobre crianças que proclamaram seu amor a Jesus antes de serem mortas pelo Estado Islâmico. Seu Facebook mostrava que em 2010 já fora acometido por uma ressaca causada pela vitória do PT nas eleições presidenciais e três anos ele depois associava o partido ao comunismo. Aos 24 anos, expressava sua crítica a Charles Darwin (“motivador da eugenia”), Karl Marx (“ideólogo de governos totalitários” e “assassinos de cristãos”), Jean Jacques Rousseau (“professava a natureza humana como dócil e feliz”) e à Escola de Frankfurt (vetora do “marxismo cultural”).

Em 2017, o rapaz foi o artífice do abaixo-assinado que pediu o cancelamento de uma palestra de Judith Butler (leia entrevista exclusiva com a filósofa aqui) em São Paulo. O documento virtual, com 373 mil adesões, não conseguiu suspender o evento, mas colocou lenha na fogueira que literalmente queimou uma boneca representando a filósofa americana na porta do Sesc Pompeia. O ritual, que remete às fogueiras da Inquisição que queimavam vivas mulheres consideradas bruxas, se alinha até mesmo com o apelido dado por Küster a Butler em suas postagens: Maga Patalógica, a bruxa criada pela Disney para tornar-se inimiga de Tio Patinhas. Naquele momento, as postagens de Bernardo Küster já tinham um engajamento muito maior, sempre marcadas pela hashtag #ForaButler. No mesmo ano de 2017, ele lançou seu canal no YouTube, hoje sua rede social mais popular, com mais de 730 mil seguidores.

Bernardo Küster na casa de Olavo de Carvalho, nos Estados Unidos | Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

Como os demais críticos da “ideologia de gênero”, para Küster os estudos interdisciplinares de gênero se constituíam em uma única “ideologia”, repleta de intenções escusas. O conceito de ideologia, segundo o youtuber, “cumpre a função de esconder e revestir objetivos políticos reais com idéias (sic) e discursos apelativos, que não expressam as verdadeiras intenções e que arrebatem (sic) os indivíduos sem que estes percebam a malícia por trás do véu de ideias?” Ele dá como exemplos a Revolução Francesa, que “usou como ideologia o culto à razão e os ideais de liberdade, fraternidade e igualdade, mas entregou o (sic) povo morte, ainda mais desigualdade social, divisão e ações nada racionais. A mesma coisa foi com o Lula e o PT”. Não à toa, Küster coloca o conjunto de ideias de Butler e de outros estudiosos e gênero como uma ideologia também destinada a “dissolver, no meio de mil propostas antagônicas, a família, a Igreja e a estabilidade social, tudo em nome de um futuro idílico sonhado pela mente doente de progressistas, como Karl Marx. Falar de gênero não incomoda. O que incomoda é ela [Butler] falar disso escondendo suas intenções reais”.

A campanha promovida por Küster se baseou na proposta de seu mestre Olavo de Carvalho: é preciso combater os autores das ideias em vez de combater as ideias em si. “Entrar em debates sobre questões de gênero é já ser derrotado in limine. Ideologia de gênero não se discute, expõe-se com força e veemência o ardil político que ela encobre. Só assim começaremos a vencer essa guerra! Chega de combater idéia (sic), combatamos as pessoas que as promovem”, escreveu em outubro de 2017.

Católico e severo crítico da Igreja liderada pelo Papa Francisco, bem como da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ele trabalha atualmente no filme “Eles estão no meio de nós”, sobre a influência da Teologia da Libertação na Igreja Católica brasileira. Seu discurso não admite seu próprio “viés ideológico”, ao apontar o dedo somente para a ideologia alheia. “A presença da Teologia da Libertação no Brasil, após 1968, embora não seja a detentora exclusiva dos malefícios no catolicismo nacional, é uma das grandes responsáveis por nossos males, pois investiu em camadas de base, ‘formação’ em escala de intelectuais e difusão ideológica”, diz a página do filme. A produção tem patrocínio da organização “Como Educar Seus Filhos”, de alfabetização domiciliar — bandeira do governo de Jair Bolsonaro, com o objetivo de blindar os alunos da suposta doutrinação sexual e partidária promovida por professores em sala de aula. Até o início de agosto de 2019, a organização havia arrecadado mais de 400 mil reais em uma plataforma de financiamento coletivo. Em abril, durante as filmagens, Küster foi à cidade de Richmond, no estado americano da Virginia, para conversar com seu mestre intelectual, Olavo de Carvalho.

Em seus vídeos e textos sobre “ideologia de gênero”, Küster ecoa distorções e desinformação alimentadas por plataformas conservadoras internacionais, a fim de fazer frente à “ameaça”, que também estaria presente no exterior. Em um deles, ele fala sobre a Bill 89 – Supporting Children, Youth and Families Act (Lei 89 de Apoio às Crianças, Jovens e Famílias), da província canadense de Ontario, que supostamente daria ao Estado o direito de tirar a guarda das crianças dos pais caso eles não concordassem com a identidade de gênero de seus filhos. Ao site Buzzfeed, Alicia Ali, então porta-voz do Ministério de Serviços para Crianças e Jovens de Ontario, negou qualquer medida remotamente similar.

Em 2017, o youtuber compartilhou a notícia do site conservador Jornal Nação sobre uma transgênero que teria abusado sexualmente de uma menor de idade nos Estados Unidos em um banheiro unissex, também usado pela criança e aberto a quaisquer gêneros. O site, por sua vez, reproduziu a versão de meios americanos da mesma linha editorial. Além de ser transgênero, a abusadora também era amiga da família, enquadrando-se em um dos padrões mais comuns nos casos de violência sexual, em que o agressor é um membro ou conhecido dos parentes da vítima. Em uma rádio local e um jornal de uma cidade próxima, não há registro de que a violência tenha ocorrido em um banheiro unissex, tampouco na Fox News, canal de notícias vinculado à direita que também noticiou o caso. O abuso foi alvo de verificação no site de checagem de fatos Snopes, que classificou a notícia como um misto de verdade (a transgênero Michelle Martinez foi condenada por abusar sexualmente da filha de uma amiga em um banheiro) e mentira (o crime não ocorreu porque ela usava um banheiro unissex).

A reportagem entrou em contato com Bernardo Küster para entrevistá-lo.  O youtuber agradeceu o convite de entrevista, mas disse não se envolver com “organizações bancadas por fundações internacionais, como a que você faz parte. Conheço o jogo muito bem”. Para Küster, organizações internacionais como as que estão relacionadas ao trabalho da Gênero e Número são promotoras do aborto e de uma agenda que atenta contra a vida, envernizada por discursos de empoderamento das mulheres e da população LGBT+.

Psicologia, Lava-Jato e religião contra a “ideologia de gênero”

A Operação Lava-Jato faz esquina com a “ideologia de gênero” na Rua Amazonas de Souza Azevedo, número 134, no bairro do Bacacheri, em Curitiba. Este é o endereço da Igreja Batista do Bacacheri, popularizada por ser frequentada pela psicóloga Marisa Lobo, ativista contrária à suposta ideologia, e por dois membros da força-tarefa da Operação, os procuradores federais Roberson Pozzobon e Deltan Dallagnol.

Além deles, figuras políticas e institucionais locais também podem ser vistas nos cultos, como funcionários da OAB/PR, do Detran/PR, e da Polícia Federal, segundo o pastor Renato Mendonça, que serve há 15 anos na instituição.

Aprovado no Ministério Público Federal quando se formou, em 2002, Dallagnol assumiu o posto no ano seguinte, contrariando lei que exigia que a posse ocorresse dois anos após o fim da graduação, segundo denúncia do jornalista Reinaldo Azevedo. Para Adriano Codato, Dallagnol é um dos autênticos representantes dos valores que a classe média local emanou para o país: “É um sujeito que acredita no mérito, já que ingressou no Ministério Público com tanta antecipação. Casos icônicos como o do procurador mostram o que o cientista político da UFPR identifica como “uma revanche da elite branca, masculina e heterossexual, que funciona como uma espécie de vanguarda do conservantismo brasileiro”.

Parceira de fé na instituição religiosa, a psicóloga Marisa Lobo é vanguardista nos debates sobre “ideologia de gênero” e fervorosa fã do procurador e da Operação — “homem honrado, digno”; “#LavaJato é nossa esperança de um país mais digno sem corrupção. Deus está usando a LavaJato (sic) para limpar o Brasil”, escreveu ela em 2016, ao compartilhar uma matéria jornalística sobre o procurador. Ao falar em doutrinação nas escolas, arremeter contra governos esquerdistas, alertar para a existência de uma “ditadura gay” e bater no peito com orgulho para louvar os serviços prestados pela Lava-Jato ao país, Lobo reúne todos os predicativos do conservadorismo da extrema-direita paranaense. Bem como Pozzobon e Dallagnol, ela é uma frequentadora discreta da igreja, segundo o pastor Renato Mendonça. “Eles chegam como qualquer outra pessoa, participam do culto, entram nos seus carros e vão embora”, sintetiza.

Mendonça afirma que nem corrupção nem “ideologia de gênero” são objeto de debates nas pregações. “Dificilmente a gente fala sobre temas específicos. A questão da ideologia de gênero é algo muito pessoal dela. Essa é a missão que talvez ela tenha escolhido e ela levanta essa bandeira. Mas há outros que não pensam como ela. A gente acredita que cada pessoa tem liberdade de escolha”, ressalta o pastor. Mendonça diz que a igreja não faz campanha para fiéis que se candidatam a cargos públicos, como ocorreu com Lobo por duas vezes, em 2014 e 2018, quando concorreu a deputada federal. “Apesar de termos pessoas envolvidas na política, no período eleitoral apenas fazemos um culto com todos que estão concorrendo a algum cargo, dizemos que estes irmãos estão na disputa e fazemos uma oração por eles. Jamais vamos dizer que os fiéis precisam votar em A ou B. Um dos princípios da Igreja Baptista é a separação entre Estado e Igreja”, garante. Mendonça esclarece que isso não quer dizer que os pastores batistas não possam fazer política partidária ou se candidatar, mas neste caso eles precisam deixar o posto. “Isso é um princípio batista. Não ocorre nas igrejas neopentecostais. Nas igrejas batistas jamais vamos ver um político sendo apresentado e falando ao microfone.”

Em 2013, Marisa Lobo ganhou notoriedade ao ter seu nome associado ao de Marcos Feliciano, quando o deputado federal tornou-se presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Naquela época, iniciavam-se no Brasil os debates sobre “ideologia de gênero”. Quando tentou tornar-se sua colega de parlamento, em 2014 e 2018, Lobo não conseguiu transformar a amplitude de seu discurso em votos.

Nas urnas, aparecia como “Marisa Lobo Psicóloga Cristã”. Em 2015, chegou a ter seu registro profissional cassado pelo Conselho Regional de Psicologia por associar seu ofício à sua fé, mas a decisão foi revertida pela Justiça.

Além de Feliciano, Lobo também foi parceira de debates sobre gênero de outra figura proeminente da política e religião brasileiras e ferrenho opositor da suposta ideologia, o presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Silas Malafaia. Lobo é autora do livro “Ideologia de gênero: como essa doutrinação está sendo usada nas escolas e o que pode ser feito para proteger a criança e os pais”, lançado em 2016.

Para ela, “a falaciosa ideologia de gênero entrou nas escolas atropelando leis, desrespeitando a vontade da maioria e por fim violentando os direitos constitucionais de pais e alunos. É uma doutrinação imposta por uma minoria que, no entanto, detém muita influência apoiada por organizações poderosas e governos esquerdistas. Os ideólogos de gênero são intolerantes, fogem ao debate democrático e, não raro, apelam para a intimidação rotulando de ‘preconceituoso’ e ‘homofóbico’ qualquer um que ouse discordar de suas ideias”.

Lobo criou, dois anos depois, um projeto voltado para as crianças, o gibi “Viva a Diferença – Valorização da Família Cristã”, auspiciado pela Igreja Baptista do Bacacheri. “Crianças têm sexo e identidade, meninos e meninas são diferentes, porém iguais em direitos. A sexualidade faz parte da vida e do corpo desde o nascimento. Crianças costumam questionar sobre assuntos polêmicos, o importante é falar na linguagem adequada, com verdade e cuidado para não ofender ou discriminar quem pensa diferente”, diz ela no site do projeto. A obra foi promovida e bem recebida por meios de comunicação evangélicos, como a TV Boas Novas (leia a reportagem aqui), ligada à Assembleia de Deus.

A psicóloga Marisa Lobo no lançamento do livro “A luta contra a corrupção” de Deltan Dallagnol | Foto: Arquivo Pessoal/ Divulgação

Como Küster, as reflexões de Lobo encontraram abrigo em colunas no site Sempre Família, lançado pela Gazeta do Povo para discutir questões comportamentais e ideológicas, enquadradas no modelo de um lar branco e cristão, formado por marido, mulher e filhos. “É uma espécie de abrigo nuclear para ultraconservadores”, nas palavras de Rogério Galindo. Em artigo de 2017, a psicóloga parece até se aproximar dos conceitos defendidos pelos estudiosos de gênero, quando colocam o conceito como algo não estático e sujeito a uma série papéis impostos pela cultura e pela sociedade: “O comportamento humano está em construção permanente. A capacidade de se atualizar e ressignificar condutas é algo típico da espécie humana com base em sua necessidade de adaptação, ou evolução, e resiliência, transformando então sua própria realidade. A sexualidade faz parte disso e não há razões para acreditarmos que deva ser tratada como algo imutável”.

Mas o propósito de tal explicação é mostrar que alguém que tenha se identificado como homossexual ou heterossexual durante toda a vida pode mudar de opção a partir de dado momento, com o apoio da psicologia e da religão. Ela defende no mesmo texto uma decisão da 14ª Vara da Justiça Federal em Brasília, que autorizou terapias de “reversão sexual”, conhecidas na imprensa como “cura gay”. Lobo rechaça esta expressão, usada para denominar tal prática terapêutica, de que foi acusada de promover. A sentença da corte de Brasília autorizava os psicólogos a realizar a chamada terapia de “reversão sexual”, mas o caso foi parar no Supremo Tribunal Federal, onde sua análise foi suspensa pela ministra Carmen Lúcia em abril deste ano. Embora Marisa afirme que o conceito de “cura gay” tenha sido criado pela imprensa, ela compartilha informações e notícias que reforçam tal prática.

“Eu renuncio à minha homossexualidade todos os dias para poder ir morar no céu. A minha homossexualidade é parte do que eu sou, mas Jesus disse que ‘quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo (sic) todos os dias, tome a sua cruz e siga-me’. Eu renuncio a mim”, disse o cantor Elias dos Santos, em entrevista ao Programa Raul Gil, compartilhada por Lobo. No post da matéria, ela declara e se autopromove: “Esse direito nenhuma lei pode tirar do cidadão. #ForaPL672 #ChegadeDitadura. Para comprar meu livros sobre ideologia de gênero, para aprender militar contra, porém com argumentos científicos acesse. www.marisalobo.com.br”. Lobo se refere ao projeto de lei 672/19, de autoria do senador Wewerton (PDT-MA), que criminaliza a LGBTfobia. A reportagem entrou em contato com a psicóloga, que chegou a confirmar que concederia uma entrevista. No entanto, na hora marcada, Lobo deixou de responder às inúmeras tentativas de contatá-la, sem dar qualquer justificativa.

“Filhos, obedeçam a seus pais no Senhor, pois isso é justo”
Colossenses, cap 3, vers. 20

O núcleo duro da esquadra paranaense “anti-ideologia de gênero” também conta com um ex-agente da segurança pública. Em 2007, a prisão de Juan Carlos Abadía, um dos traficantes de drogas mais buscados em todo o mundo, ajudou a catapultar Fernando Francischini para a fama. Ele foi o delegado da Polícia Federal responsável pela operação que culminou na detenção do colombiano. No mesmo ano, também esteve à frente da ação que prendeu Law Kin Chong, considerado um dos maiores contrabandistas do país. A pauta de segurança lhe asseguraria uma vaga na Câmara dos Deputados em 2010 e 2014 e o posto de titular da Secretaria de Segurança Pública no governo do tucano Beto Richa, em 2015.

“Ele tem o discurso do prende e arrebenta”, diz o cientista político Adriano Codato, relembrando a célebre expressão do ex-presidente do regime militar João Baptista Figueiredo. A polícia de Francischini prendeu 13 pessoas e arrebentou outras 200 em Curitiba, em março de 2015, no episódio que ficou conhecido como a “Batalha do Centro Cívico”, quando professores protestavam contra mudanças no regime previdenciário do estado.

A agenda do religioso político, membro da Assembleia de Deus, se deslocou para o antipetismo, anticomunismo, “anti-ideologia de gênero”, acompanhando o eixo de pensamento da direita do país. Em 2015, ele denunciou:  “A Petrobras, sob domínio Petista, agora quer ensinar IDEOLOGIA DE GÊNERO para crianças nas Creches de Educação Infantil!!!”. Em maio de 2018, o UOL revelou que Francischini usou 24 mil reais de cota parlamentar para para pagar a empresa que administra a “Folha Política”, site de ultradireita que teve sua página removida do Facebook em outubro de 2018 por “violar as regras de autenticidade” de conteúdo da rede social, com “motivação política e econômica”. O Ministério Público Federal também pediu a cassação do parlamentar por divulgar notícias falsas sobre fraudes em urnas eletrônicas no Paraná nas eleições de 2018. Assim como Bernardo Küster e Marisa Lobo, Fernando Francischini se recusou a falar com a reportagem da Gênero e Número.

“Foi uma estratégia eleitoral de muito sucesso”, analisa o cientista político da UFPR sobre a adoção por parte de Francischini de uma agenda além da segurança pública. “Só um político muito primitivo acreditaria em pautas como ‘ameaça comunista’. Não é o caso do deputado”, ele completa. Codato ainda observa que a Polícia Federal também mudou seu eixo de atuação nos últimos anos: se na época da prisão de Abadia as ações mais midiáticas da corporação estavam voltadas para o combate ao tráfico de drogas, a partir da Lava-Jato a corrupção se tornou a inimiga número 1.

A estratégia exitosa do delegado licenciado fez dele o mais votado deputado estadual da história do Paraná, eleito em 2018 com 427 mil votos e levando consigo outros sete parlamentares do PSL de Jair Bolsonaro para a Assembleia Legislativa do estado. Francischini preferiu ficar no Paraná do que tentar a reeleição para a Câmara dos Deputados, a fim de pavimentar sua candidatura para a prefeitura de Curitiba, em 2020 (Marisa Lobo também já se lançou pré-candidata). Para já se fortalecer na corrida eleitoral, ele deu uma prova de poder ao ser eleito presidente da comissão mais importante da casa, a de Constituição, Justiça e Cidadania. Mas Francischini não se apartou de Brasília. Muito pelo contrário.

Pai e filho na política: o delegado e deputado estadual Fernando Francischini e seu filho, o deputado federal Felipe Francischini na Assembleia Legislativa do Paraná | Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

O delegado licenciado da PF ajudou a levar o filho, Felipe Francischini, para a Câmara. Também eleito pelo PSL, ele iniciou seu primeiro mandato em Brasília ao 27 anos, em 2019. No pleito de 2014, havia sido eleito deputado estadual. Felipe herdou a agenda política do pai, a fé na Assembleia de Deus, sua virulência antiesquerda, “anti-ideologia de gênero”, anticorrupção, e a presidência da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, também a mais importante da Casa. Em seu mandato na assembleia paranaense, entre 2015 e 2018, votou a favor das medidas de austeridade fiscal e reforma previdenciária que detonaram a “Batalha do Centro Cívico”. No dia do conflito, foi um dos parlamentares que furaram o bloqueio dos manifestantes abrigados dentro de um veículo blindado da Polícia Militar para chegar à Assembleia Legislativa. A estratégia foi montada por seu pai, secretário de Segurança à época.

Um de seus legados na assembleia é o projeto “Escola sem Partido” que tramita nesta legislatura, mas ainda não foi votado em plenário. Como as demais réplicas no resto do país, a proposta visa evitar uma suposta doutrinação política e ideológica em sala de aula, que inclui o ensino da “ideologia de gênero”. “O poder público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer ou direcionar o natural desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da ideologia de gênero”, diz o texto. Em julho, o idealizador nacional do movimento, o advogado Miguel Nagib, informou que suspenderá todas as atividades a ele relacionadas; Nagib elencou a falta de apoio de Jair Bolsonaro entre os motivos para sua decisão.

O projeto é de autoria de Felipe Francischini com Ricardo Arruda, parlamentar eleito em 2018 para seu segundo mandato na Casa e outro “dramático” expoente do conservadorismo na política paranaense. A retórica cristã e agressiva contra a esquerda se repete, bem como a defesa “dos valores da família”. Formado em “gestão financeira e pós graduado em finanças”, segundo consta em sua biografia, “após se consolidar financeiramente”, Arruda “resolveu dar sua contribuição ao seu país”. Assim como os Francischinis e Marisa Lobo, ele é evangélico, membro da Igreja Mundial do Poder de Deus. E assim como o presidente Jair Bolsonaro, lamentou a ausência de prisão perpétua no Brasil ao comentar a morte brutal do garoto Rhuan Maycon, no Distrito Federal. Em coro com conterrâneos, como Marisa Lobo, e pares ideológicos, como Eduardo Bolsonaro, ele acredita que o assassinato foi a primeira morte causada por “ideologia de gênero” no Brasil.

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