CAP. VII
PROSPERIDADE
CAP. VII
PROSPERIDADE
Fé e gestão da vida cotidiana: fundamentos da Teologia da Prosperidade transmitidos aos fiéis durante os cultos | Foto: Igreja Batista Betânia
CAP. VII
PROSPERIDADE
Fé e gestão da vida cotidiana: fundamentos da Teologia da Prosperidade transmitidos aos fiéis durante os cultos | Foto: Igreja Batista Betânia
Superar dificuldades de todas as ordens e construir uma história de vida edificante é o propósito dos fiéis que buscam palavras de consolo e inspiração nos cultos das igrejas evangélicas que professam a Teologia da Prosperidade
Por Maria Martha Bruno
Pastor Everdan abriu o culto com os versículos 3 e 4 do capítulo 12 do livro do Apocalipse: “E viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas. E a sua cauda levou após si a terça parte das estrelas do céu, e lançou-as sobre a terra; e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando ela à luz, lhe tragasse o filho”. Everdan explicaria em seguida que dar à luz significava a redenção de seus fiéis, enquanto o dragão simbolizava os males terrenos que lhes causavam angústia. “O dragão quer impedir você de pagar sua dívida, de pagar sua casa própria, de resolver seu processo, de tirar sua casa da justiça. Quer impedir a minha vitória, impedir de eu (sic) sair do aluguel, de sair desempregado (sic)”, afirmou o pastor, elevando o tom de voz à medida em que citava os percalços enfrentados por seu rebanho.
Everdan pregava para pouco mais de cem pessoas no início de uma noite de segunda-feira, a menos de 500 metros do principal núcleo geográfico da esquerda no Rio de Janeiro, a Praça São Salvador. Uma praça de feiras, militância e agitação cultural e política, citada em 2016 por Flávio Bolsonaro em um debate de televisão como um reduto do PSOL. Fincada no bairro das Laranjeiras, Zona Sul da cidade, desde a década de 1980, a Igreja Universal do Reino de Deus abriga um público diferente dos frequentadores da São Salvador, uma das poucas áreas da cidade onde Marcelo Crivella e Jair Bolsonaro perderam as eleições de 2016 e 2018, respectivamente. São senhoras de cabelos presos e Bíblia na mão, jovens de vestimenta discreta e sem adereços como brincos ou tatuagens, homens com mochilas surradas nas costas, aparentando ter encerrado o expediente há pouco tempo.
No culto “Nação dos Vencedores”, celebrado todas as segundas em seis horários diferentes, todos parecem se irmanar em suas aflições e buscar uma palavra de consolo ou um milagre intermediados por “uma reunião cujo propósito é levar às pessoas a prosperidade, mudar de vida e tomar posse da seguinte promessa: ‘eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância’”. A mensagem de Jesus, presente no Evangelho de João, do Novo Testamento, é a convocação principal do cartaz que promove o culto na porta da igreja. A “Nação dos Vencedores” do templo das Laranjeiras é a versão local do culto “Nação dos 318”, realizado sempre às segundas-feiras em todas as sedes da Universal no país e dedicado à “superação total na área financeira”. O número é uma referência bíblica aos 318 homens que lutaram ao lado de Abraão em uma batalha para resgatar seu sobrinho.
O dragão protagonista da pregação de Everdan está representado nos números do IBGE e em dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Os aflitos que, durante a cerimônia, levantaram suas carteiras de trabalho rogando a Deus por uma ocupação fazem parte dos 12,8 milhões de brasileiros desempregados em julho de 2019 (12% da população). O dragão também afeta um contingente maior ainda de subocupados, 28,4 milhões ou 24,8% da população. São mulheres e homens que trabalham menos de 40 horas por semana ou desempregados que desistiram de buscar trabalho, todos reunidos no contingente que o IBGE chama de subutilizados. Números da CNC mostram que, no mesmo mês de julho, 64% das famílias brasileiras estavam endividadas, o maior contingente registrado para o mês desde 2013.
Se a Teologia da Prosperidade, base teológica do ideal de “vida em abundância”, permite aos evangélicos deixar de lado o voto de austeridade e sacrifício e ambicionar conquistas materiais, ela também é combustível para vencer os altos e baixos do dia a dia. O sucesso da mensagem do culto reside em apontar caminhos espirituais e práticas para a realização de desejos e para a conquista de direitos fundamentais de brasileiros em situação econômica precária. Falando a seus fiéis ao fim de uma segunda-feira, Everdan não relaciona prosperidade a uma vida de ostentação e luxo, mas à obtenção de um emprego e ao pagamento de dívidas. É preciso, afinal, conectar a pregação à realidade dos fiéis.
Concebida nos Estados Unidos como parte de um movimento liderado pelo pastor batista Essek William Kenyon, a Teologia da Prosperidade aparece no contexto posterior à Grande Depressão da década de 1930. O religioso passou a ensinar aos fiéis exercícios mentais que antecipariam a obtenção da graça desejada. Um de seus discípulos, Kenneth Hagin, sistematizou as práticas e começou a teorizar sobre o tema em livros nas décadas de 1950 e 1960. Segundo a antropóloga pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) Jacqueline Teixeira, que há quase uma década estuda o tema, sobretudo dentro da Igreja Universal, livros de Hagin como “I Believe in Visions” e “What Faith Is” tornaram-se uma espécie de manifesto da Teologia da Prosperidade. Neles, “questões como pobreza, doença e infelicidade no casamento podem ser considerados sinais de ‘maldição’”, apontam os estudos de Teixeira.
A cena evangélica deixou de ser um nicho no país há muito tempo. E por isso mesmo a produção de Hagin alcança até mesmo nomes da cena pop de um Brasil que é 29% evangélico, segundo dados do Instituto de Pesquisa DataFolha. Os irmãos André e Ana Paula Valadão, fenômenos da música cristã com indicações ao Grammy Latino e shows que já reuniram multidões no Brasil, são adeptos dos ensinamentos de Hagin. André, que comanda um culto para 5 mil pessoas todas as terças-feiras – o Culto da Fé – é formado como pastor pelo Rhema Bible Trainning Center/Kenneth Hagin Ministries, nos Estados Unidos. Na conexão Brasil-EUA, Ana Paula também fez laços fortes e fundou uma unidade da sua igreja de origem em Miami, a Igreja Batista da Lagoinha. Before the Throne Church – by Lagoinha é o nome do estabelecimento.
Uma ideia milionária
No templo lotado, outro pastor entoava um sintetizador lúgubre nos teclados enquanto Everdan elevava o tom de voz para exorcizar o dragão de seus fiéis. Gratuitamente, como ocorreria em outros momentos do culto, ele evocava imagens de religiões de matriz africana para remeter ao mal: “Pensa aí agora na área da sua vida financeira em que existe um mal. Esse espírito que está na frente dessa pessoa, esse espírito que atende o (sic) nome de tranca-rua, esse espírito que atende o (sic) nome de molambo, que quer essa pessoa envergonhada, humilhada, essa pessoa dependendo dos outros (…) O que você quer é essa pessoa dependendo da sogra, de sogro, quer essa pessoa dependendo de pai e de mãe”. Para Everdan, o espírito do mal impede que o fiel coloque em prática “uma ideia milionária, mas que não sai da gaveta, um contrato milionário, mas que não sai da gaveta”.
O líder religioso inspira nos seus fiéis sentimentos de autoconfiança e potência—“ideia e contrato milionários”—, enquanto despreza relações de dependência financeiras, associando-as a uma humilhação.
O sucesso pelos próprios méritos é condição primordial da Teologia da Prosperidade, que aposta em sentimentos de perseverança, determinação e convicção pessoal para impulsionar os indivíduos a lutar contra suas dificuldades. “A teologia traz uma linguagem gestora do cotidiano, fundamentalmente sobre como organizar a vida financeira—por exemplo, aprender a guardar, aplicar e fazer o dinheiro render, mesmo que em pouca quantia. Atrelada a isso está a organização da família. É uma racionalização da vida”, explica Jacqueline Teixeira em entrevista à Gênero e Número.
A teologia é frequentemente associada à política neoliberal por seu caráter individualista, que aposta mais nos esforços pessoais que nas redes de proteção coletivas oferecidas pelo Estado.
No contexto neoliberal, os fundamentos e práticas empreendedoras acabam por extrapolar o âmbito profissional e ganhar contornos pessoais, sendo aplicados em outras áreas da vida do indivíduo, como a saúde. O cumprimento de metas, a necessidade de tomar iniciativas, bem como o investimento na performance e no desempenho não estão mais restritos ao trabalho. Os empreendedores não pertencem mais apenas ao mundo dos negócios, mas são, segundo o sociólogo francês Alain Ehrenberg, “empresários de suas próprias vidas”. Em o “Culto da performance – Da aventura empreendedora à depressão nervosa”, ele investiga modelos de conduta inspiradores (no discurso corporativo, esportivo e no consumo) para tempos em que soluções coletivas estão em crise e “não temos mais nada senão a nós mesmos para nos servir de referência”.
Não à toa, também dentro da igreja a ideia de superação pelo próprio esforço circunda permanentemente as mensagens direcionadas a interlocutores que atravessam dificuldades, sejam financeiras, familiares ou pessoais. “Não é apenas o espaço objetivo da empresa, mas também o próprio espaço mental agora se constrói sob os auspícios da competição e do desafio lançado a si mesmo”, diz o filósofo francês Gilles Lipovetsky no livro “A Felicidade Paradoxal”. Vencer obstáculos e construir uma narrativa edificante é o propósito principal dos que buscam uma mensagem de consolo e de fortalecimento na liturgia das igrejas que professam a Teologia da Prosperidade.
Uma teoria para a “Nação dos Vencedores”
O sociólogo Roberto Dutra, professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), apresenta nuances dessas práticas no contexto do liberalismo econômico do século 21. Ele ressalta que críticos da ‘Teologia da Prosperidade’, sobretudo de setores políticos de esquerda, ignoram “o modo como ela transforma as expectativas sociais e individuais”.
Dutra acredita que é preciso observar com atenção “as incontáveis variações e combinações que [a Teologia da Prosperidade] sofre na prática das igrejas, sendo, em muitos casos, acoplada a visões e práticas de solidariedade e ajuda mútua na busca de emprego e bem-estar, assumindo assim um sentido coletivo”.
Para Jacqueline Teixeira, a teologia oferece uma “uma pedagogia da sobrevivência em contextos de crise”, que se expande em países no momento pós-colonial, o que ajuda a explicar o sucesso dessas ideias quando levadas por igrejas neopentecostais a diversos países da África e da Ásia. “Essa proposta de gestão da vida instaura uma rede muito importante de proteção e de convivência. Ela permite que o sujeito passe a se enxergar como alguém responsável por si e pelos que estão próximo a ele. O indivíduo não é alienado, mas alguém que, num contexto de crise e de dificuldade econômica, toma as rédeas da própria vida”, completa a antropóloga.
Portanto, se por um lado a “Nação de Vencedores” exalta um ser empreendedor, que pode ter uma ideia milionária e não deve depender financeiramente dos demais, por outro ela não abandona e investe nos laços familiares e comunitários, criados dentro da própria igreja.
Por isso, a relevância de grupos de apoio mútuo para os diversos segmentos de frequentadores da Universal e de outras igrejas cristãs. Quando da visita ao culto, a repórter foi abordada por uma fiel da igreja com um convite para participação em um evento da Força Jovem Universal (FJU). O grupo promove cursos, eventos esportivos e de capacitação profissional, palestras, missões de evangelização e outras atividades que buscam ampliar o número de fiéis e integrá-los. O evento em questão oferecia networking e auxílio na elaboração de currículos para aqueles que estivessem fora do mercado de trabalho ou buscando novas oportunidades.
“Você pode andar na moda e ser temente a Deus”
Em 30 minutos de culto, ofertas e o dízimo foram requisitados pelo Pastor Everdan três vezes. “Você que não é dizimista e deseja ser, sai do teu lugar, vem aqui, receba uma unção e pega o seu saquitel [pequeno saco de pano onde é colocado o dinheiro]. E tudo que vier na sua mão você vai devolver na próxima segunda-feira”, ele pediu. Embora tenha dito anteriormente que não haveria restrições aos fiéis que não contribuíssem, Everdan fez uma diferenciação: “Meu Deus, abençoa a vida de todos os dizimistas. Que o Senhor venha a abençoar, que venha a fazer um milagre acontecer na vida de todos os dizimistas”.
Um dos vetores para a benção de Deus, seja ela em forma de saúde ou prosperidade, é justamente o dízimo (que corresponde a uma porcentagem da remuneração do fiel doada obrigatoriamente à igreja) e a oferta (quantia concedida voluntariamente), segundo diversos expoentes da teologia, que se justificam com base em citações bíblicas. Em sua pregação “Uma vida de prosperidade”, Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, afirma que “oferta é benção” e que, juntamente com o dízimo, é “um meio de receber um favor divino e um meio de felicidade”. “A graça de Deus atua na vida material, emocional e espiritual. A oferta chama a graça de Deus para você. Você pode ter vitórias espirituais através da oferta. Você pode ter solução de problemas emocionais através da oferta. Você pode ter cura através da oferta. Você pode ter solução de problemas através da oferta.”
Diversas citações bíblicas são mencionadas por Malafaia para sustentar as ideias da Teologia da Prosperidade. Em II Coríntios, capítulo 9, versículo 8, os versos misturam os conceitos de graça e abundância: “E Deus é poderoso para fazer abundar em vós toda a graça, a fim de que tendo sempre, em tudo, toda a suficiência, abundeis em toda a boa obra”. Em Josué, capítulo 1, versículo 8, Deus fala ao servo de Moisés: “Não se aparte da tua boca o livro desta lei; antes medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer conforme a tudo quanto nele está escrito; porque então farás prosperar o teu caminho, e serás bem sucedido”.
Se o ascetismo protestante determinava que o indivíduo deveria se despir de todos os prazeres materiais e cultivar uma vida simples em busca da redenção após a morte, a Teologia da Prosperidade não renuncia às benesses oferecidas pelo plano terreno. Os gozos da vida são permitidos e valorizados, para que o fiel desfrute dos bens e das comodidades que o dinheiro pode lhe proporcionar, sejam roupas, viagens ou a estabilidade econômica possibilitada por um bom emprego. Naiane Câmara, pastora da Assembleia de Deus Belém no Rio de Janeiro (leia a reportagem aqui), conta com quase 100 mil seguidores no Instagram, onde posta selfies e imagens que valorizam sua beleza. Ali, ela busca promover o equilíbrio entre vaidade e devoção religiosa. “Qual cabelo você curte mais em você, liso ou enrolado??? Euuuu amo o enrolado mas o liso é mais fácil!! (…) “ Noisssss (sic) é gospel, mas é cada tapa na cara do diabo que noissssss (sic) dá se cuidando!!!”…..kkkkkkk Jesus te criou para você se amar e o nome Dele ser glorificado em TODAS as áreas da sua vida. Até mesmo na hora de se cuidar e se amar!!!!! VOCÊ PODE SER LINDA, ANDAR NA MODA, SER DECENTE, TEMENTE e SERVA DE DEUS!!”, ela escreveu em junho de 2019, ao postar fotos comparando ambos os visuais.
A ameaça à família próspera: o “pânico moral” do gênero
Ainda que o sucesso econômico seja o tema principal de cultos como “A Nação dos Vencedores”, a mensagem dos pastores que transmitem as ideias da Teologia da Prosperidade de forma alguma se limita à superação de obstáculos para a realização de conquistas materiais. A harmonia na família também faz parte dos anseios de bem-estar e sucesso do indivíduo e compõe o que Jacqueline Teixeira chamou em seus estudos sobre a Universal de “pedagogia da prosperidade”. “As práticas da prosperidade na IURD não se restringem apenas ao âmbito financeiro representado pelo dinheiro— ou seja, o dinheiro não é o único mediador-ritual da prosperidade—, as noções de prosperidade e de vida em abundância podem ser praticadas e, consequentemente, reformuladas, em todas as instâncias da vida, sendo a família a principal delas”, escreveu a autora em sua tese de mestrado, em 2012.
É justamente no ordenamento familiar proposto por essa pedagogia que emergem os modelos binários de gênero, em que a prosperidade deve ser experimentada e agenciada por corpos que seguem padrões heterossexuais de masculinidade e feminilidade. “A gestão da vida cotidiana é também uma linguagem teológica pensada a partir de dois modelos fundamentais: um homem da prosperidade e uma mulher da prosperidade”, afirma Teixeira, em entrevista à reportagem. Em 2016, Ana Paula Valadão havia declarado sua “santa indignação contra a ideologia de gênero em postagem onde pedia boicote a uma marca de roupas que, em campanha do Dia dos Namorados, desconstruira estereótipos de gênero. A cantora chamava atenção para uma cena em que atores indiscriminadamente vestiam roupas de homens e mulheres na propaganda e finalizava sua reclamação com as hashtags: #DeusFezHomemEMulher e #FamíliaÉHomemEMulher
Na Universal, dois dos projetos de integração e aprendizado voltados para a comunidade são destinados ao aperfeiçoamento desses modelos: o Intellimen (“Escolhemos esse nome porque além de soar como um super-herói, que todo homem secretamente aspira ser desde criança, ele engloba tudo o que o projeto aspira: formar homens inteligentes e melhores em tudo”) e o Godlywood (“Nosso principal objetivo é o de levar as jovens a se tornarem mulheres exemplares e se tornarem avessas às influências e imposições Hollywoodianas. Elas desenvolvem laços familiares que tem (sic) se perdido nos últimos anos”). O estabelecimento de padrões de gênero segundo as ideias de prosperidade determinadas por denominações neopentecostais ajuda a explicar a batalha dessas instituições contra a “ideologia de gênero” imposta nas escolas.
Ao tentar influenciar educação em seu lado mais vulnerável—as crianças—, a “ideologia de gênero” torna-se um risco à família, célula central de constituição da sociedade próspera. A disputa pela verdade no discurso sobre gênero e sexualidade na esfera pública uniu as igrejas Católica e evangélicas, justamente pela ameaça que os estudos de gênero representariam ao modelo bíblico de família e de prosperidade na vida pessoal e no seio do lar. Jacqueline Teixeira observa que o debate sobre gênero no contexto da educação, bem como outras frentes de discussão recentes que uniram lideranças e políticos cristãos nos últimos anos (como o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos), criaram um “pânico moral” que outras frentes históricas de batalha comportamental, como a legalização do aborto, ainda não haviam suscitado:
“Nos últimos dez anos, o debate sobre o aborto, que sempre teve na Igreja Católica o principal agente contrário à legalização, não produzia uma comoção pública. Na medida em que essa discussão sobre direitos reprodutivos se atrela a debates sobre direitos do adolescente e planos educacionais, na discussão contra a ‘ideologia de gênero’, se consegue produzir essa dimensão de pânico moral que o debate solitário sobre o aborto não conseguiu”.
Quando da ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, o presidente evidenciou que a “guerra” contra a “ideologia de gênero” faz parte do seu projeto de República. “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores”, disse ele em sua posse, dia 1º de janeiro. Para executar seu plano, se cercou de ministros que rezam na mesma cartilha, como Damares Alves, pastora evangélica e titular da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, cujo título, aliás, muito diz sobre o tipo de organização social priorizado pelo governo. Sujeito protegido pelo Estado desde a Constituição de 1934, a família brasileira, “base da sociedade” e resultado da “união estável entre o homem e a mulher”, segundo o artigo 226 da Carta de 1988 (entendimento mudado pelo Supremo Tribunal Federal com o reconhecimento da união homoafetiva, em 2011), é o bem maior protegido pelos guardiões evangélicos da República. Sua acepção bíblica e heterossexual é a semente para a vida próspera idealizada por Jair Bolsonaro, Silas Malafaia e Edir Macedo.
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