CAP. VIII
CONHECIMENTO
CONTRA O MEDO

Butler: “O único propósito da expressão ‘ideologia de gênero’ é distorcer a realidade” | Foto: Miguel Taverna / CCBB

CAP. VIII
CONHECIMENTO
CONTRA O MEDO

Butler: “O único propósito da expressão ‘ideologia de gênero’ é distorcer a realidade” | Foto: Miguel Taverna / CCBB

Em entrevista à Gênero e Número, filósofa Judith Butler propõe diálogo com as igrejas, chama a atenção para a emergência de forças autoritárias e relembra protestos contra ela em São Paulo como “celebração da misoginia”

Por Maria Martha Bruno

Na primeira visita em que fez ao Brasil, em 2015, Judith Butler passou quase despercebida a quem não se interessa pelos estudos de gênero. Na porta do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, um grupo de dez pessoas bradava contra sua presença, afirmando que ela promovia a “ideologia homossexual nas escolas”. Já em 2017, quando retornou ao país, o Brasil já estava em outro momento. Havia um clima de perseguição às ideias que pudessem representar, na visão da extrema-direita, uma ameaça “à moral e aos bons costumes”. Butler falaria em um seminário sobre populismo, autoritarismo e democracia. Na época, lançava no Brasil seu livro Caminhos divergentes: judaicidade e a crítica do sionismo (Boitempo). Mas os ataques e o abaixo-assinado contra ela começaram na internet, quando grupos alegavam que a filósofa faria uma palestra para “promover a ideologia de gênero”. O destino da norte-americana era novamente São Paulo. Ela cumpriu sua agenda principal, mas vivenciou o clima de misoginia aflorada, uma prévia do que candidatos que promovem uma agenda de equidade e direitos das mulheres enfrentariam dali a um ano, nas eleições de 2018. Butler foi embora impressionada. Em entrevista recente à Gênero e Número, ela afirmou que a academia precisa voltar ao básico para ampliar seu discurso e combater a desinformação sobre os estudos de gênero: “Devemos deixar claro o que fazemos, por que isso é importante, e também mostrar o que não fazemos e por que não fazemos. Isto é, explicar nosso pensamento e nossa ética”. Leia a entrevista completa abaixo

Gênero e Número – Por que o conceito de “ideologia de gênero” não existe? A quem e a quais interesses ele serve?

Judith Butler – Não existe “ideologia de gênero” porque este conceito sugere um conjunto de crenças ou uma teoria única. Na verdade, o que existe é um universo complexo de estudos de gênero com muitas e variadas abordagens metodológicas e acadêmicas. É um campo acadêmico vivo, isto é, as pessoas o tempo todo discutem pressupostos, objetivos e definições. É também um campo interdisciplinar, o que significa que acadêmicos que trabalham com gênero nas Ciências Biológicas nem sempre se integram com aqueles que trabalham com Estudos Urbanos ou com Estudos da Performance. É uma disciplina acadêmica rica e ampla de significado, que não propõe uma visão única. Se com a palavra “ideologia” as pessoas querem dizer que todo este campo acadêmico (presente em pelo menos 80 países) pretende negar a realidade ou professar um conjunto de falsas crenças, então as pessoas não entenderam nada sobre este tipo de pesquisa. A expressão “ideologia de gênero” transmite a ideia de uma teoria monolítica e seu único propósito é distorcer a realidade. Na verdade, ela busca entender a realidade dos corpos, da sexualidade, da família, dos parentescos, da reprodução humana, da desigualdade, da liberdade, da justiça, da masculinidade, da feminilidade, e de todas as formas de vivenciar o gênero que não foram adequadamente entendidas ainda. Acima de tudo, é um estudo que propõe conhecimento de verdade, em vez de preconceito.

A ideia de que o ensino de gênero nas escolas constitui uma “doutrinação” é simplesmente falsa. Nenhum professor mostra a um aluno como se masturbar ou diz a ele para mudar de gênero.

Isso não faz sentido. Depois de terem sido silenciados por anos, assuntos como masturbação e mudança de sexo são discutidos em todo o mundo e são temas sobre os quais é importante ter um conhecimento claro e bem fundamentado. A função de um professor é ouvir e acolher diversos pontos de vista sobre assuntos difíceis e estimular debates, não impor uma verdade aos jovens. Dizer que o tabu sobre a homosexualidade tem que acabar não significa dizer que todos os tabus têm que acabar. Os tabus e as leis relacionados ao combate ao abuso de crianças têm que ser mantidos com vigilância, já que elas ainda não estão em uma posição para fazer uma escolha consciente sobre sua sexualidade. Nossa função como pais e professores é oferecer um ambiente de apoio para que as crianças encontrem seu próprio caminho, sem serem coagidas física ou psicologicamente. Eu sou contra qualquer tipo de coerção neste sentido.

Gênero e Número – Recentemente, a senhora afirmou que “ter medo de gênero é como ter medo de um fantasma” e disse que aqueles que se opõem aos estudos de gênero agem baseados na ignorância sobre o tema. Além da onda de extrema-direita liderada no Brasil pelo presidente Jair Bolsonaro, esse é um país historicamente conservador, e agora também atravessa  um momento de anti-intelectualismo, que até inclui cortes no orçamento da educação. Como combater a ignorância e a desinformação neste contexto?

Judith Butler – O Brasil também é um país de conquistas incríveis na pesquisa de ciências sociais, humanas, psicologia, teatro, produção e crítica literárias. A questão é: como o populismo de direita de Bolsonaro está atacando as universidades e as classes intelectualizadas? As comunidades religiosas leem panfletos resumindo o que é “ideologia de gênero”, mas isso não é o mesmo que ler centenas de livros e de artigos que oferecem uma visão muito mais real e complexa dessas áreas de estudo. De repente os livros também se tornaram perigosos: eles não devem ser abertos, nem lidos. Essa recusa em estudar o assunto contra o qual eles se opõem esconde a ignorância dessa própria oposição, como também o próprio compromisso com a ignorância. Frequentemente isso é um sinal de emergência do fascismo na vida cultural.

Gênero e Número – A senhora se disse chocada quando ativistas de extrema-direita queimaram uma boneca que lhe representava (como uma espécie de bruxa), em sua visita a São Paulo, em 2017. Dois anos depois e levando-se em consideração o grupo político que tomou o poder no Brasil, quais são suas principais reflexões sobre aquele episódio? Já foi alvo deste tipo de hostilidade em algum outro lugar do mundo?

Judith Butler – Foi uma experiência única para mim, embora eu tenha enfrentado muita resistência na Alemanha, por exemplo, por causa do meu posicionamento em relação aos direitos humanos na Palestina. Ninguém queimou uma boneca, mas saíram algumas caricaturas minhas na imprensa. Na Alemanha, o medo é de que a crítica injusta às políticas de Israel façam de você uma pessoa antissemita. Tenho orgulho de ser judia e como judia luto por mais justiça na Palestina. “Queimar uma bruxa” é uma das práticas mais misóginas da história. Portanto, queimar uma boneca como se eu fosse uma bruxa é uma celebração da misoginia. Ao mesmo tempo, era uma figura trans, com um sutiã rosa, sugerindo que o meu eu masculino de alguma forma era drag. De certo modo, me reconheceram como masculina, ou confundiram a imagem que fazem de mim com a de uma mulher que deve ser queimada ou a de uma trans de quem devem debochar. Eu sou uma pessoa não-binária, e acho que eles não sabiam muito bem como me atacar: feminista clássica? Defensora de pessoas trans?

Protesto contra a filósofa norte-americana em 2017, em São Paulo | Foto: Mídia Ninja

Gênero e Número – Tentamos entrevistar para este projeto o youtuber Bernardo Küster, que iniciou um abaixo-assinado contra sua visita e uma forte campanha contra a senhora em 2017. Ele se recusou a falar conosco por nossa orientação editorial. Essa mesma pessoa recentemente foi recomendada pelo presidente da República como uma fonte confiável de informação. O diálogo ainda é uma estratégia possível para lidar com estes atores político-ideológicos? Se não, qual seria o melhor plano? E como enfrentar sua influência digital e intelectual sobre a sociedade?

Judith Butler –  O diálogo é sempre um objetivo importante, mas todo diálogo deve ser baseado em certas condições. Se você pede a uma pessoa para comprovar aquelas assinaturas e provar que ela não usou robôs, aposto que ela não irá expor a tecnologia que usou. As pessoas que querem produzir efeitos falsos na mídia não querem que suas mentiras sejam expostas.

Gênero e Número – Como é possível desconstruir a distorção que colocou propósitos como a equidade de gênero e a liberdade de gênero como uma ideologia criada para doutrinar e destruir valores fundamentais da Igreja Católica e das igrejas evangélicas?

Judith Butler –  Como intelectuais, temos que continuar publicando livros e textos que exponham as mentiras que são declaradas sobre estudos de gênero, feministas, queer e trans. Devemos deixar claro o que fazemos, por que isso é importante, e também mostrar o que não fazemos e por que não fazemos. Isto é, voltar ao básico no nosso campo de estudo, explicar nosso pensamento e nossa ética.

Gênero e Número  – No Brasil, as igrejas evangélicas se tornaram uma força política fundamental por trás do combate à “ideologia de gênero”. Elas contam com uma bancada numerosa no Congresso Nacional e possuem uma rede de centenas de canais de rádio e televisão em todo o país. Muitos evangélicos são também alguns dos principais aliados do presidente Jair Bolsonaro. Como lidar com tamanha influência considerando seu principal ativo – a fé das pessoas?

Judith Butler – Acredito que seja possível criar formas de organização dentro da própria igreja para trazer uma perspectiva mais humana e mais baseada no conhecimento. A tradição da Teologia da Libertação predominante nas igrejas evangélicas antes da guinada à direita se preocupava com a condição dos pobres e de todos os marginalizados. Se considerarmos as questões de desigualdade de gênero no Brasil, a exposição de mulheres, travestis e pessoas trans a situações de violência, então estamos falando dos marginalizados, daqueles que temem por suas vidas, daqueles que têm pouco para comer, daqueles cujo trabalho e habitação se tornaram precários por causa das condições econômicas contemporâneas. Seria bom levar essas conversas para dentro das igrejas; levar organizações cristãs gays e lésbicas, e pais de lideranças desses grupos para introduzir uma abordagem mais humana, mais ética e acolhedora sobre este assunto, que alimenta tanto medo e ódio.

Os poderes autoritários têm apoio das parcelas da população que eles conseguem assustar, seja com a demonização dos judeus, a criminalização dos mexicanos, ou a “patologização” da  comunidade LGBT+ e de suas formas de expressão. Uma minoria nasce para incutir medo e ódio nas pessoas. Com isso, os autoritários prometem que vão “limpar” o país dos marginais, restabelecer a família em sua forma mais tradicional, e reconstituir as desigualdades sociais e formas de marginalização que fazem parte do que chamam de “tradição”. Portanto, em nome do conhecimento e da humanidade, temos que parar essas forças autoritárias, que tentam nos manter ignorantes, cheios de medo e de ódio, estejam elas nas igrejas ou no Estado.

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